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Era a primeira vez que aceitava, de verdade, o "deixa levar" cantado em coro pelos amigos toda vez que inventava desculpas para ficar em casa. Dizia que estava velho para essas coisas, que não ia saber o que falar, que não acompanhava mais. Sempre era isso: "deixa levar".

No fundo, achava que nem ao grupo de amigos pertencia mais. Aos 28, se arrependia de todos os vinte e poucos anos que não havia vivido. Foi quando sentiu. A cintura dela vibrava. Vibrava. Vibrava no mesmo ritmo da música.

A cada nota da banda, o corpo dela mudava. Sentia os braços o envolver como o acordeom, nos passos pesados das notas do piano, arrepiado como se os dedos dela fossem pequenos arcos de violino em concerto.

Pensou que aquelas notas beirando sua pele o levariam até o fim do mundo. Acordaria no outro dia, roupas num chão qualquer. Mão ainda no corpo dela, rindo dos gemidos abafados na noite anterior por medo de acordar os vizinhos.

Era outono. Era a quinta tentativa. No mesmo lugar. Com as mesmas músicas. Mas só agora aquele fantasma nasceu.

Um casal de amigos insistia desde o inverno passado em tirá-lo do apartamento com uma janela sem vista. De tirá-lo dos discos do passado, de livros medíocres, de uma depressão persistente, de um relacionamento morto por causas naturais para uma pequena temporada portenha.

Naqueles dias de insistência, sentia que a solidão ia chegar por uma janela junto da névoa da manhã. Seria como uma alma esquelética, com trapos e longas unhas, que toda vez que encostasse nele ia fazer crescer um centímetro. Um centímetro, um centímetro, um centímetro… E com o passar das décadas e séculos que a medicina moderna permitiria, já ocupando quartos e quartos da casa, iria bloquear de vez a luz.

Seria quando a solidão voltaria ainda esquelética e de unhas grandes, mas vestiria sua capa e capuz negro o levaria para o campo dos solitários. Talvez ela também falasse "deixa levar".

Mas levou.

E levava os dedos da cintura até o banco do carro. Ela no volante discutindo amenidades, trânsito, parando para comprar vinho em uma loja de conveniência, comparando qual álbum do Bruce Springsteen era o melhor, se ele era tão bom quanto o Dylan. tinha deixado levar. “Darklands” e “Adam raised a cain” no som do carro tão diferentes do som que dançaram e que ainda ecoava em arrepios na pele dele.

Ele buscava, nas linhas do corpo dela, fossem as tatuagens, os caminhos por dentro das roupas… Buscava entender o que tanto o excitava. Ela não tinha nada de diferente. Tinha o mesmo brilho na pele que cria uma faixa de luz enquanto o carro corre na estrada. Tem o mesmo perfume que caminha logo ao lado dela como uma aura. Tem os mesmos peitos, a mesma bunda, a mesma coxa. Os mesmos olhos, a mesma boca… Tenta fugir dos pensamentos, que grudavam nela, dizendo que o Springsteen ainda precisava fazer uma “Simple twist of fate” ou alguma outra faixa, daquelas mais desconhecidas, selecionadas com atenção para parecer culto. Ela riu. Cantarolou com o som do carro, enquanto o Boss cantava que a avenida estava viva e que esperava o fantasma de Tom Joad na luz da fogueira.

Era madrugada, estava em outro país e o celular - há muito sem sinal - perdeu os últimos momentos de bateria. As casas iam rareando ao lado do carro, o aeroporto era muito passado e suas luzes já não cortavam os céus. O vento fazia o rio avançar forte, suas ondas repetindo "deixa levar" contra as pedras na beira da estrada.

Na luz cheia de poeira das ruas, o rosto dela lembrava a solidão entre a névoa. Contou para ela: uma vez sonhou com um amigo, amigo dos tempos de escola que estava na cidade vindo do sul junto do frio.

Haviam fumado uns cigarros, bebido algumas bebidas, falado algumas falações quando decidiram invadir a antiga estação de trens - a que foi tombada pelo patrimônio histórico e esperava há algumas décadas pela reforma prometida.

Os dois pularam o muro, começaram a vagar pelos trilhos quebrados falando sobre trens e viagens, sobre as pessoas do tempo de escola, tudo que não eram e sonhavam ter sido. Foi quando surgiram os primeiros manifestantes. Camisas amarradas no rostos, gritando palavras de protesto. Do outro lado, a polícia batia seus cassetetes nos escudos, como animais chamando pra briga.

Ela interrompeu o relato, abaixando o volume do carro, querendo entender melhor quem eram as pessoas na estação. Era a primeira vez em muito tempo que alguém abaixava o volume da música para o ouvir.

Era uma reintegração de posse. Os camisetas amarradas estavam morando ali há algum tempo e a polícia veio cumprir alguma ordem judicial. Naquela noite, noite de bebedeira, longe dos olhos da imprensa.

E ele e o amigo do sul foram presos. A prisão ficava na beira de um rio, como aquele rio que ainda batia forte com as ondas, agora as do mar entrando com o vento do caminho aberto aos continentes.

Ventava muito no sonho e a prisão balançava ao vento como uma pipa. Eles se agarravam ao chão, mas o chão era longe demais. Foi quando acordou. Disse que aquele sonho era a lembrança mais viva que tinha até aquele dia. E era longe.

Ela morava numa vila de casas, na verdade quase chalés com varandas, construídas na subida de um morro nos anos 60 para ser uma espécie de sociedade alternativa hippie. Fundada pela paz e amor, “foi como um casamento que a paixão acaba em alguns anos”, ela disse.

Os hippies não resistiram aos anos 70 e ao trabalho em falta na região durante o inverno. Daquele tempo, só alguns velhos que ainda viviam nos anos de ouro da juventude; as antigas árvores da mata ainda original e as baleias que faziam seus cantos por aqueles mares rumo ao gelo do sul.

Não se ouvia nada, nem se via luzes até a penúltima casa, que era onde ela vivia. Os faróis cortavam o chão com dois fachos de luz passando pelos paralelepípedos, passando pelas árvores, até a escada da entrada onde estava sentado - alerta - um enorme e gordo cachorro molhado e sujo de lama. Perguntou se era dela mas Hugo era de todos, dizia ela ao descer do carro, batendo palmas para a luz da varanda acender como magia.

Aquele era só um cão de rua como vários que vagavam ali pela vila, vindos da mata atrás. Uns davam comida, outros banho, cuidavam de pulgas e carrapatos. Disse que até bancaram os cuidados de um que apareceu com um ferimento feio na cabeça.

E ela estava ali fazendo com Hugo a parte dela, pelo visto. Passava a mão devagar pela cabeça do cachorro que fechava os olhos fazendo um barulho baixo de prazer. Ele deitava para que fizesse carinho. Disse que Hugo vinha toda noite, pedia uns afagos, ia embora. Quando ela não está, ele espera. Diz que é mais fiel e constante que família. Hugo derretia no chão, olhos fechados, quase dormindo. Ela buscou um pano, falou para ele deitar. Ele deitou.

Os dois entraram na casa. Ela foi lavar a mão, ele abriu o vinho. Beberam ao som de músicas, todas escolhidas a dedo para impressionar o visitante. Falaram sobre a vida, recitaram poemas péssimos, filosofaram sobre Deus e sentidos perdidos nas músicas que ouviam Ela falava, ria, gesticulava, enquanto a imaginação dele discorria laudas e laudas dentro de sua cabeça. Da vontade de sentir aqueles lábios de verdade e não daquele jeito apressado, desajeitado, como se beijaram na milonga.

Depois, roçar seu pescoço com sua boca. Descendo até os peitos, chupando cada um deles com calma, sentindo a cintura dela vibrando como as cordas de um cello anunciando um tema de Gardel.

Era uma vontade selvagem que tomava a mente, rosto, os braços, as mãos, enchendo todo seu corpo de pêlos. Desejo que derretia seus músculos em novas formas, fazendo suas orelhas caírem, seu nariz gelar. Fazendo ir ao chão, patas abertas, corpo nu, entregue, pedindo o feitiço das mãos dela.

São elas que aquecem o corpo, numa pontada de prazer que percorre das patas até as orelhas, mexendo o corpo inteiro. A cauda, recém adquirida, batia forte em todas as direções. A respiração empolgada, os olhos brilhantes de alegria se fecham de prazer.

Ele vai para longe, mais longe ainda, para um tempo onde tudo é diferente, antes de remédios, categorias estranhas do xvideos, livros de auto-ajuda. Um tempo, onde o prazer da mãos dela acariciando a barriga, lentamente, eram os dedos longos de outro corpo. Dedos brincando dentro de sua calça até ele gozar em um banheiro de shopping.

Lambeu as mãos, os braços, o rosto dela. Se pudesse, lamberia todo o corpo muitas e muitas vezes. Seus olhos brilhavam de encantamento e prazer. Não queria nunca sair de lá, se saísse, iria voltar e voltar novamente.

Queria mais dela, mais uma vez, toda vez. A luz batia no rosto dela como na rua, mas agora não era a solidão entre a névoa, mas um sorriso. O mesmo longo, longo, longo sorriso de que os amigos haviam falado tanto tentando o convencer a sair.

Ele cheirava os pés dela, lambia. Venerando. Satisfeita, ela abriu a porta, o fez sair.

Ele se agarrava ao chão com suas patas mas ela o empurrava para a varanda. Olhou em volta e a noite comia a visão. Só havia Hugo, o outro cachorro, que fumava deitado, lendo um Borges, buscando compreensão da vida, na espera de entrar na casa novamente.

Outros cães formavam fila até sumir nas trevas da noite. A porta abriu e ela chamou Hugo. O cão pulou nos braços dela, que o levou pra dentro fazendo com que todos os cães dessem um passo pra frente na fila. Queria voltar e lamber os pés dela, sentir o cheiro da cintura dela ao vibrar as mãos na barriga dele. Sentir a magia. Seguindo os cães em fila, desceu as escadas. Os degraus separavam a casa da noite.

Foi até a poeira das ruas, até o canto de "deixa levar, deixa levar" das ondas. Os cães se perdiam na noite até a névoa da manhã cheia de solidão. Milhares de cães perdidos em busca de um amor qualquer.

credits

from Voando Reto num Muro de Tijolos, released November 4, 2020
Letras: Daniel Pandeló Corrêa
Voz: Daniel Pandeló Corrêa
Produção, mixagem e masterização: Sarah Abdala
Arte da Capa: Letícia Tomás

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about

Daniel Pandelo Correa Petrópolis, Brazil

Escritor carioca radicado em Petrópolis. Tem três livros publicados e se prepara para uma nova fase na carreira usando áudio e vídeo como plataformas literárias. Em 2020, ele lançará “Invocações”, “Voando Reto Num Muro de Tijolos” e “Pequenas Pessoas Desaparecem o Tempo Todo”. ... more

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