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Expresso Transcontinental

from Voando Reto num Muro de Tijolos by Daniel Pandeló Corrêa

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lyrics

Carrego muita tristeza num trem sob o mar. Olham meus documentos e fotos, num trem sob o mar. Suburbano, latino, suspeito, num expresso sob o mar.

Carrego minhas máscaras entre continentes, correndo veloz pela França. Suburbano, latino, suspeito, num expresso sob o mar.

Fujo por medo do diabo, de mim. Sim, fujo do diabo que habita em mim num trem sob o mar. Carrego muita mentira num espelho de bolso. Olho tantos que nem sei num espelho de bolso. Tentei mais, tentei mais, virei meus pais.

Seremos passado ao amanhecer. Tentei mais, tentei mais, virei meus pais.

Seremos passado ao amanhecer.

Num trem sob o mar, espíritos, cultos, além da pele. Suburbano, latino, suspeito entre casas num expresso transcontinental. Seremos passado antes de amanhecer.

Passado de um tempo e lugar onde existia magia. Onde se podia crer além da pele, carne e ossos. Crer deuses e demônios, espíritos, cultos e ilusões.

De todos, guardei somente os prédios onde me escondi horas de carro da casa onde cresci. Ainda era menino, buscando mãos alheias para me sentir seguro, sem saber o que dizer. Nunca sabia muitas palavras, mas tinha a certeza qualquer menina de olhos grandes podia guardar algo suficientemente exótico para se perder entre meus pensamentos de brinquedo.

Muito mudou em Campo Grande. Meus amigos têm filhos e festas de aniversário da Peppa Pig e Bob Esponja. A primeira casa do bairro era escola, virou estacionamento. O império da Silbene fechou. Tive muitos amores que nasceram e morreram nos fundos da Silbene. Depois da aula, tomando um milk-shake, comendo um salgado, passando os dedos pelas revistas. Eram amores de fundo de loja, amor de não mais que uma troca de olhar. Amores sem nome. Amores que fecharam as portas com a Silbene. Amores que foram demolidos e hoje são um estacionamento,10 reais por 30 minutos. Diária a checar.

Amores que choraram, como fiz no quarto de hotel; fiz no ônibus indo para São Paulo. Chorei no táxi, chorei no avião.

Passo o tempo com medo da insanidade que me vem à noite, me levando embora, para uma clínica na frente dos olhares dos vizinhos pelas frestas de portas. Passei tanto tempo tentando não ser o que falaram que seria quando crescesse que não fui a lugar nenhum. Passei tanto tempo tentando fazer com que a loucura não me definisse que não notei quando ela entrou e tirou os sapatos. Foi na semana passada.

Desde então, voltei a sonhar com um vulcão. Ele existia no bairro onde cresci. Era um morro largo no centro de um parque nacional. Com um pouco de imaginação podia se ver, no plano topo, milhões e milhões de anos de fogo e destruição. Quase 30 anos atrás tinha muita imaginação e ainda não sabia o que significava o termo extinto. Passei anos e anos da minha infância com medo da destruição iminente que aquela montanha traria.

Tinha muito medo do diabo e do inferno que me aguardavam por não acreditar em Deus, mas ter medo do vulcão era muito pior. Tudo que eu conhecia, todas as pessoas que amava, todos os passarinhos, todos os cachorros, todas as folhas da mangueira do Seu Júlio, todas as cartas erradas entreges do carteiro novo,os namoricos por cima dos muros, as fofocas na calçada aos domingos, os jogos de futebol com chinelos de gols, todos os todos. Todos inocentes condenados. Todos iriam morrer, de uma hora para outra. Meus pais, minha irmã, meus avós, eu mesmo. Seríamos fogo e destruição.

Acordava assustado de noite com um barulho que vinha do lado de fora da casa. Calçava meus chinelos, ia em silêncio pelo corredor, até forçar meus olhos pelos vidros pouco transparentes da sala.

A vista correndo sobre as casas. Tetos de laje exposta iluminadas pelo mercúrio das ruas, até a escuridão que era a montanha. Olhava atentamente para ela buscando algo para me alarmar, já pensando quem teria que acordar na casa. Que brinquedos salvaria, qual caminho nos levaria mais facilmente ao mar.

E eu demorava muito para me acalmar, dormir de novo. Mesmo sabendo a palavra “extinto”, tinha essa sensação de morte iminente. Tinha o medo daquele fantasma cinza que se erguia como um monumento do chão de onde crescemos. Era um Deus adormecido eternamente que não conseguia deixar de temer. Muito pouco mudou em Campo Grande desde que era fogo e destruição e os deuses andavam entre nós.

Houve um tempo em que as árvores, as montanhas, tinham vozes. Se erguiam como tambores tocados por mãos calejadas sem raízes buscando um lugar para se esconderem. Desse som surgia, surgia sim. Surgia a voz de Olorum, a voz de deus.

A voz guiou o caminho da fuga no tempo do rei. Na época, já éramos escravos. Nas noites silenciosas contavam uma história de um jovem. Um dia saiu de casa. Talvez não se sentisse parte, talvez ninguém o tenha entendido. Mas ele foi de lugar em lugar, na busca do que lhe fazia bem. E de porta em porta não havia porta que o abrigasse, braços que se abrissem, boca que se falasse, coxas que fossem colo, sexo que acolhesse. Vagava sem lugar. Temia, acima de tudo, voltar. E por isso continuava a fugir sem notar que uma doença se alastrava pela região desde a casa dos pais até o último lugar em que seus pés tocaram.

Todas as pessoas, bichos e plantas caíam em escuridão enquanto ele fugia. O fugitivo entregou seus sofrimentos aos céus, às árvores, a Olorum. Já desistia de tudo quando ouviu uma voz no vento, entre as folhas, que lhe dizia: “era hora de voltar”. Que caminhava com sofrimento e era dono da peste. Era hora de se arrepender e voltar atrás.

Seguindo a voz da floresta, voltou. Num dia, as portas se abriram. Os mortos se levantaram. Ele estava onde deveria estar. Senhor da cura, dominava os caminhos da peste que mesmo criou por ir tão longe.

Peste que caminha meus caminhos, entra em minha casa, toma banho comigo. Janta aos meus pés, me espera para dormir. Peste que me leva de volta para o elevador, contrariando minhas regras valiosas, seguindo escondidos para onde moro. Peste que ignora meu medo de morrer sozinho e louco, e aceita: é hora de registrar tudo que sou e fui nessas décadas e décadas de falsa juventude.

Sou Daniel Pandeló Corrêa, nascido e criado no subúrbio. Um pouco índio, um pouco negro, um pouco europeu, um pouco escravo, um pouco genocídio como todo latino-americano. Por anos, me escondi em tantas mentiras que criei passados, presentes e futuros muito mais aceitáveis. E vivi neles. Era steampunk, cyberpunk, dieselpunk nas mentiras para esconder o meu suburbiapunk.

Sou peste sem saber cura, sou a loucura que me consome de noite, sou o vulcão que se extinguiu, sou a luz de mercúrio. Sou as histórias que contarei antes de amanhecer enquanto carrego minhas tristezas nesse expresso transcontinental.

credits

from Voando Reto num Muro de Tijolos, released November 4, 2020
Letras: Daniel Pandeló Corrêa
Voz: Daniel Pandeló Corrêa
Produção, mixagem e masterização: Sarah Abdala
Arte da Capa: Letícia Tomás

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about

Daniel Pandelo Correa Petrópolis, Brazil

Escritor carioca radicado em Petrópolis. Tem três livros publicados e se prepara para uma nova fase na carreira usando áudio e vídeo como plataformas literárias. Em 2020, ele lançará “Invocações”, “Voando Reto Num Muro de Tijolos” e “Pequenas Pessoas Desaparecem o Tempo Todo”. ... more

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